sexta-feira, 18 de janeiro de 2013


Instrumento musicar
madeira e marfim - 1994
Jorge Ulisses 

                       A Harmonia do Todo

Por Junho, sem o mais leve murmúrio de vento, a música bailava ali pertinho, rente ao voo das aves que, como nós, afluíam ao Festival de Guitarras, disperso por lugares de eleição que a cidade de Santo Tirso dispõe para este que é, na vitrina do género, um dos maiores acontecimentos culturais no Norte do país. E sempre a música, num contorno lúdico, a desafiar contentamentos e convites.
Nesse fim de tarde, esboçando um movimento alegre, via-se que só o sol obedecia à presença dos sons, numa balsa lenta até à triunfal entrada em palco de um primeiro andamento de Mozart. Depois recusou ficar ali connosco. Em seu lugar quis o dia oferecer o aroma do rosmaninho bravo para acudir à ânsia de ouvir os acordes que tão depressa identificamos saírem de uma guitarra construída pelo mestre Jorge Ulisses, alinhada num trinar clássico que segurava silêncios e provocava ovações pela actuação do grande guitarrista Ricardo Barceló, acompanhado de Jorge Oraison. Foi então que vi, numa apurada linha de ficção que aproxima verosimilhança, uma ave pousar, como diz o ilustre professor Armando do Carmo, sobre a gúmica guitarra do nosso mestre e amigo íntimo.
Uns dias antes, em algures, iniciara a leitura dos primeiros capítulos de um livro que traçava os perfis sobre os conhecidos sons de uma flauta de Schoeck, para um poema de Hermann Hesse, que liberta as palavras no imaginário dos homens e dos seus sonhos para a transformação e renovação do mundo, neste início de século, como quem caminha pelas veredas utópicas desse outro fantástico escritor Thomas Mann. Razão bastante para me lembrar das mãos do escultor que afagam o rosto desbravado da oficina onde todos os gestos se repetem e, ali ao lado, levanta-se um torso grego a apontar vícios à velha Atenas depois da esconjura dos bruxos que tomaram assento no interior dos palácios para procederem ao assalto das searas do pensamento que sobrevoa as alamedas de uma manhã embriagada. Talvez este desejo alcançado por Hermann Hesse de chegar primeiro à fonte e só depois ir ao concreto da água como no dia em que conheceu Schoeck, tinha este vinte anos de idade, e só muito mais tarde se terá apercebido da pura amizade com o compositor.
Daí o olhar, o nosso olhar poético, ligado às origens e às causas, atravessar as sombras que passam rente aos gestos que nos falam da intimidade e do sabor dos frutos. Nem outro olhar, por mais secreto que fosse, tomaria o seu disfarce, ante a estranha cumplicidade dos que vencidos e desanimados tombaram nas escarpas da sua fraqueza. Só Anisa, esta mulher inspirada na música que Schoeck tão bem soube compor, ofereceu o lugar das mãos que outrora César mandara decepar, à guisa de acanhadas culturas, esquecendo a beleza das aves que logo às primeiras horas da manhã lhe ofereceram o voo.Não esqueço os punhais cingindo o corpo da palavra, enquanto objecto, sempre ao dispor da arte para, diante dela, tecer as horas gastas num obstinado rigor de construção sem levar consigo uma porção de argumentos passíveis de defesa, ao ouvir um andamento bem definido de Domenico Pellegrini, por Barceló, ao dedilhar as cordas prateadas da guitarra, essa obra de arte de Jorge Ulisses, que outros tocadores tanto cobiçam. Aí, soube o escultor colocar os afectos na palnura do esmero quando, no leve manejar do formão, outra guitarra, de súbito, tomava a sua forma. Como, mais tarde, tão grande era a vivência do tempo iluminado no rosto de Eugénio de Andrade, exposto naquele busto em mármore, cingindo a aura de um poema com uma flor a que deu o título “As Mãos e os Frutos”. Por assim dizer, Jorge Ulisses não cedeu à caprichosa e irritável deusa que em si mesma envolveu e enclausurou o poeta no interior da Fundação com o seu nome. Nem Ricardo Barceló e Jorge Oraison, hoje, levariam para as bandas da Foz qualquer composição que lhe agradasse, e que outros já há muito esperavam na gananciosa grelha de partida, procurando prosas que Hermann Hesse escreveu sobre a memória dos grandes compositores. Nem ninguém, de boa fé, pode ainda esquecer que foi algures em Paris que este Nobel da literatura segurou nas páginas do seu livro ”Musica” uma pertinente temática musical, o que se pode perfeitamente harmonizar com os acordes da inesquecível guitarra de Jorge Ulisses, na noite quente desse Junho irrepreensível, a alegrar o auditório da Biblioteca Municipal de Santo Tirso.
                                                                                                       Álvaro de Oliveira



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